Escutar e Ouvir

ouvirBen vindos ao meu Bunker particular!

Hoje, como faço todos os dias, estava em meu estimado trem, às 06 da manhã, sentado (é difícil, mas não impossível, viajar sentado no trem vindo Saracuruna para Central do Brasil nesse horário), com meus fones de ouvido, curtindo meus rotineiros 30 minutos de viagem. Navegando em audiobook (estava ouvindo mais uma vez o magnífico “a arte da guerra”) não sei porque motivo olhei para o lado e reparei que a menina que estava sentada ao meu lado falava comigo.

Retirei o fone direito (do lado dela) e tentei fazer minha mente funcionar estéreo, ouvindo o que ela dizia e tentando prestar atenção nos ensinamentos bélicos de Sun Tzu, inundados a esquerda. Ledo engano, sou macho… As mulheres que tem esse dom de ter a compreensão estéreo, já estive em mesas onde 4 mulheres conversavam entre si abordando 4 assuntos diferentes e todas se entendiam, enquanto eu parecia um cego no meio de um tiroteio.

Mesmo contra minha vontade guardei os fones, e percebi que a menina estava fascinada pelo livro que eu trazia em minhas mãos, um exemplar surrado e extremamente personalizado do livro “Chore para o Céu”, espetacular conto de Anne Rice, da qual ela é fã mas nunca tinha conseguido achar à venda em loja física.

Ouvir… Escutar… é uma arte distinta. A comunicação verbal é um privilégio do ser humano que nos faz diferente de todos os animais, nos torna superiores e nos tirou da idade da pedra.

Outro caso: a menina que trabalha comigo recebeu uma difícil missão: avisar aos chefes das diversas seções de meu trabalho que seriam recolhidas todas as impressoras individuais, para que se colocasse uma central de impressão no setor. Simples assim, depois da palavra “recolhidas” ninguém mais iria escutar nada do que ela dissesse pois isso implicava em gerar uma dificuldade a mais para o desenvolvimento do trabalho, ou seja as palavras subsequentes seriam ouvidas como se estivessem proferidas em russo com sotaque chinês.

Mais outro caso:

Mulher fala para o homem: – Eu falo com você, mas parece que não me escuta… Muito comum nas D.R. dos casais, é uma forma de falar que você ouve mas as idéias não entram na cabeça. Normalmente escutamos até o momento em que o que a pessoa que fala começa a nos atingir, nesse ponto criamos um bloqueio, onde as palavras não fazem mais sentido. Nesse ponto começamos a preparar uma defesa, para ir contra o que foi dito ou no mais extremo preparamos um ataque a pessoa ou a algo que ela preze, quando não encontramos mais caminhos para a conversa civilizada. Nesta ponto a escuta arma toda a conversa para responder a altura.

Bloqueio, armadura, contra ataque nos faz escutar apenas o que queremos, o que é mas conveniente, e muita das vezes criamos frases na nossa mente através de fragmentos do que ouvimos.

Onde quero chegar? Devemos escutar o desconhecido chato e carente que puxa conversa conosco nos coletivos, mesmo vendo que estamos curtindo nossa tão querida solidão? Ser um homem expresso viril e ranzinza, que é antissocial e amedrontador? Ou andar com uma moeda de cara ou coroa pra ver a atitude correta?

Vamos lá… Escutar uma pessoa aumenta a autoestima dela. Ela vai ficar feliz em finalmente ver que outro ser humano teve a gentileza de ouvir sua história. Essa história pode lhe ser muito útil, pode lhe colocar um pouco no mundo daquele outro ser, mesmo que seja num mundo imaginário, pois cada adulto que passa por nós na rua tem potencialmente no mínimo duas décadas de histórias tristes, divertidas, complicadas, bonitas, etc. pra compartilhar conosco.

Mas nem sempre será assim… Temos filtros, e muitos.

Algumas vezes realmente devemos ignorar. Quando a pessoa que fala é ofensiva, quando é demais fútil, quando o assunto é descartável ou quando claramente vemos que existem interesses ocultos por trás de palavras inocentes. Isso é muito ligado a nosso bem estar emocional.

É o que mais faço. É o ouvir. Normalmente quando estou em transporte coletivo, quando estou concentrado em uma atividade essencial (sou macho, tenho a percepção mono) ou quando a pessoa fala coisas extremamente descartáveis mais não dá pra dizer não pra ela. Você estará agradando essa pessoa, pois realmente ela não carece de seu entendimento para se realizar, mas precisa de um psicólogo que a escute, e você a ouvindo, de vez enquanto balançando a cabeça positivamente e dizendo o famoso “hum hum” é o suficiente pra fazê-la extremamente feliz naquele momento. É a terapia do, como Tyler Durden diz, amigo descartável.

Charles Darwin, em sua Teoria da Evolução ditou que os seres vivos passam por uma seleção natural e sexual para evoluir, onde somente as espécies mais adaptadas sobrevivem… Realmente podemos incluir isso nas idéias. Isso é difícil, pois em uma conversa dinâmica é difícil filtrar o que é real, útil, mentira ou viagem do locutor. Registrar tudo seria o ideal, pra aplicar o filtro depois, mais isso implica em quebra de ideias.  O que podemos fazer é viajar nas palavras, montar um teatro em nossa mente e depois repassar a peça, fazendo o devido ajuste de roteiro e continuidade.

Nesse nível, perigoso e complicado, prestamos atenção a TUDO que é dito. Nos é exigido que tenhamos empatia com a pessoa, que viajemos em seu mundo de sonhos e palavras e absorvamos tudo o que é dito. Todas as informações são importantes, por isso é o nível da atenção total.

Perigoso porque é como ler um bom livro. Passamos em nosso subconsciente a adotar tudo como verdade absoluta (coisa quase impossível de acontecer) e a acreditar. É como os grandes oradores ganham seus fiéis seguidores, alguns até ditos extremistas, e perdem a noção de senso crítico (como o machista, a feminista, o fanático religioso, etc).

Pra finalizar podemos resumir tudo o que foi dito em uma frase “Temos uma facilidade imensa em falar,  mas como é difícil ouvir”

O ato de ouvir não é só com os ouvidos. Os olhos tem um papel na interpretação das palavras, o corpo, gestos, a frequência da respiração. É um conjunto completo. Se levar em consideração estes detalhes, descobrirá muitas coisas que não percebia antes sobre a pessoa que fala.

Mas cuidado! Ouvir o que o outro tem a dizer sem reagir, sem se armar, pode lhe trazer verdades sobre si que você não tem coragem de saber. Imagine você descobrir que não é aquela ótima pessoa, austera e sensata, que sempre pensou ser aos olhos do locutor que está dirigindo a palavra a você?

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